terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Solenidade da Santa Mãe de Deus Maria - Santa Missa Conventual


A Sagrada Liturgia consagrou à Mãe de Deus, a conclusão da oitava do Natal, que coincide com o início do Ano civil e que, conforme o evangelho, é o dia em que impuseram o nome de Jesus: “Quando completaram os oito dias para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo anjo antes de ser concebido” [1].

A partir do tema do Nome de Jesus, explicitamente declarado no evangelho de hoje, compreendemos a 1ª. Leitura com o texto da benção sacerdotal, sugerida pelo próprio Deus: Ao abençoar os filhos de Israel, dizei-lhe: O Senhor te abençoe e te guarde! O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face, e se compadeça de ti... Assim invocarão o meu nome... e eu os abençoarei”[2].

Outrora esta bênção era reservada aos filhos de Israel, agora, em Cristo, a bênção do Pai estende-se a todas as nações. É em Cristo Jesus, nos diz S. Paulo, que “Deus abençoa com todas as bênçãos espirituais” [3] a todos aqueles que buscam a Deus com o coração sincero.[4]

Assim, a melhor maneira de iniciarmos este novo ano é invocando o nome de Deus para dEle receber o dom precioso da paz.

Paz, tão necessária aos nossos tempos cada vez mais imersos em tantos problemas, sobretudo no tocante à convivência humana. Quantas guerras, quantas injustiças que clamam os céus,

Por essa razão há exatamente quarenta anos atrás o Servo de Deus o papa Paulo VI, iniciou a comemoração do “Dia Mundial da Paz”, tão enfatizada pelo seu sucessor e também Servo de Deus, o papa João Paulo II. Neste ano, o nosso Santo Padre Bento XVI, na tradicional mensagem concernente a esta efeméride, escreveu: No início de um ano novo, desejo fazer chegar meus ardentes votos de paz, acompanhados duma calorosa mensagem de esperança, aos homens e mulheres do mundo inteiro; faço-o, propondo à reflexão comum o tema com que abri esta mensagem e que me está particularmente a peito: “Família humana, comunidade de paz”. Com efeito, a primeira forma de comunhão entre pessoas é a que o amor suscita entre um homem e uma mulher decididos a unir-se estavelmente para construírem juntos uma nova família. Entretanto, os povos da terra também são chamados a instaurar entre si relações de solidariedade e colaboração, como convém em membros da única família humana: « Os homens – sentenciou o Concílio Vaticano II constituem todos uma só comunidade; todos têm a mesma origem, pois foi Deus quem fez habitar em toda a terra o inteiro gênero humano[5]; têm também todos um só fim último, Deus ».[6]

Sim, a verdadeira paz brota do amor, da caridade, do respeito sincero a toda pessoa humana. Respeito e amor que nasce no seio da família humana que, no dizer do Santo Padre, é comunhão íntima de vida e de amor fundada sobre o matrimônio entre um homem e uma mulher, e que, por isso, constitui « o lugar primário da ‘‘humanização” da pessoa e da sociedade », o «berço da vida e do amor ».

Por conta disso, não se pode falar em paz, sem se falar também da importância da família humana. Que pode haver na terra mais feliz e alegre que a família cristã? – escreveu o venerável papa Pio XII – Nascida junto ao altar do Senhor, onde o amor foi proclamado santo vínculo indissolúvel, consolida-se e cresce no mesmo amor que a graça superna alimenta.[7]

É neste sentido que Bento XVI, na citada Mensagem, nos ensina que a família é justamente designada como a primeira sociedade natural, « uma instituição divina colocada como fundamento da vida das pessoas, como protótipo de todo o ordenamento social»[8], E mais ainda, é ela a primeira a primeira e insubstituível educadora para a paz[9]. Querer construir uma sociedade de paz, sem uma atenção e um cuidado todo especial à família humana, é construir sobre a areia e o vento. Onde poderá o ser humano em formação aprender melhor a apreciar o «sabor» genuíno da paz – questiona-nos enfaticamente o Santo Padre – do que no «ninho » primordial que a natureza lhe prepara?[10]

Não é de admirar, portanto que, ao lado de tantas guerras e lutas insanas que assolam o nosso mundo, está um verdadeiro combate a instituição familiar querida por Deus, tornando a paz uma mera palavra poética ou quimérica. Por isso, diz-nos enfaticamente o Santo Padre que quem, mesmo inconscientemente, combate o instituto familiar, debilita a paz na comunidade inteira, nacional e internacional, porque enfraquece aquela que é efetivamente a principal « agência » de paz. Este é um ponto que merece especial reflexão: tudo o que contribui para debilitar a família fundada sobre o matrimônio de um homem e uma mulher, aquilo que direta ou indiretamente refreia a sua abertura ao acolhimento responsável de uma nova vida, o que dificulta o seu direito de ser a primeira responsável pela educação dos filhos, constitui um impedimento objetivo no caminho da paz. [11]

E no seu discurso de abertura da V Conferência do Episcopado da América Latina e do Caribe, em Aparecida, no ano passado, disse: A família, “patrimônio da humanidade”, constituiu um dos tesouros mais importantes dos povos latino-americanos. Ela foi e é escola de fé, palestra de valores humanos e cívicos, lar em que a vida humana nasce e é acolhida generosa e responsavelmente. No entanto, na atualidade sofre situações provocadas pelo secularismo e pelo relativismo ético, pelos diversos fluxos migratórios internos e externos, pela pobreza, pela instabilidade social e por legislações civis contrárias ao matrimônio que, ao favorecer os anticoncepcionais e o aborto, ameaçam o futuro dos povos. [12]

Todavia, a importância dada à família, não se limita a uma casa física, mas deve estender-se à grande família da humanidade. Para esta a casa é a terra, o ambiente que Deus criador nos deu para que o habitássemos com criatividade e responsabilidade. Por isso, exorta-nos o Santo Padre: Devemos cuidar do ambiente: este foi confiado ao homem, para que o guarde e cultive com liberdade responsável, tendo sempre como critério orientador o bem de todos. Obviamente, o ser humano tem um primado de valor sobre toda a criação. Respeitar o ambiente não significa considerar a natureza material ou animal mais importante do que o homem; quer dizer antes não a considerar egoisticamente à completa disposição dos próprios interesses, porque as gerações futuras também têm o direito de beneficiar da criação, exprimindo nela a mesma liberdade responsável que reivindicamos para nós.[13]

O amor de Deus, manifestado no Mistério da Encarnação que hora celebramos, deve nos inspirar a vivermos uma verdadeira aliança de amor também com o mundo que nos cerca.

Contudo, não nos esqueçamos que esta preocupação com a família e com o mundo, deve ser igualmente a nossa preocupação. Não podemos ler esta mensagem do santo Padre como algo distante, mas como um verdadeiro “envio missionário”. Cabem aqui as contundentes palavras de São João Crisóstomo: “Cristão, tu prestarás conta do mundo”.

E neste envio que o Santo Padre nos hoje nos faz no início do ano, contamos com o exemplo e a intercessão de nossa Mãe Maria Santíssima. Ela, que é invocada como Rainha da Paz e Rainha da Família, nos fortalecerá!

Por isso que a Igreja, ao invocar hoje a bênção de Deus, o faz por intermédio da Santíssima Virgem: Ó Deus...dai-nos contar sempre com a sua intercessão, pois ela nos trouxe o autor da vida. [14]

A bênção de Deus adquire, por assim dizer, um tom materno: são os fiéis abençoados em Jesus, por intercessão de Maria, porque somente a pureza e o amor desta humilde Virgem os tornam dignos de “receberem o autor da vida”.

E a presença desta amorosa Mãe é firme e ao mesmo tempo discreta, como o sal e o fermento. Na segunda leitura S. Paulo menciona-a, mas não a nomeia, salientando unicamente que “Deus enviou o Seu Filho nascido de uma mulher... para que todos recebêssemos a filiação adotiva”[15]. A graça da adoção chega aos homens através de Maria a qual, sendo Mãe de Cristo, é também Mãe dos que, em Cristo, se tornam filhos de Deus.

Também no Santo Evangelho é humilde e discreta a presença de Maria Santíssima, no ato de cumprir o seu ofício de Mãe. A narração deixa entrever que Maria recebe os pastores e alegremente lhes mostra Jesus, ouvindo com serenidade o seu testemunho. Os pastores, quais primeiros missionários, partem “glorificando e louvando a Deus por tudo que tinham visto e ouvido”[16]. Maria Santíssima, qual observante monja, numa virginal estabilidade, permanece junto do Seu divino Filho, na clausura da contemplação, onde “guarda todos esses fatos meditando sobre eles em seu coração”.[17]

Amados irmãos e irmãs, que ao proclamarmos hoje a Virgem Maria, Mãe de Deus e Mãe da Igreja, possamos tomar consciência da nossa vocação missionária de sermos verdadeiros artífices da paz, apóstolos da família, lembrando-nos que não temos o direito de reclamar um mundo melhor se não o começamos em nosso próprio coração. [18]

[1] Lc 2, 21
[2] Nm 6, 23-27
[3] Ef 1, 3
[4] Cf. Missal Romano, Oração Eucarística IV
[5] At 17, 26
[6] Mensagem para o Dia Mundial da Paz por S.S. o Papa Bento XVI, nº. 1
[7] Carta Encíclica “Sertum Laetitiae” por ocasião do 150º. Aniversário da constituição da hierarquia eclesiástica nos Estados Unidos da América, por S. S. o Papa Pio XII, em 01º. de novembro de 1939, nº. 8
[8] Mensagem para o Dia Mundial da Paz por S.S. o Papa Bento XVI, nº. 2
[9] Idem, no. 3
[10] Idem
[11] Idem nº. 5
[12] Discurso do Papa Bento XVI na sessão inaugural da V Conferência Geral do Episcopado da América latina e do Caribe. Aparecida, 13 de maio de 2007.
[13] Mensagem para o Dia Mundial da Paz por S.S. o Papa Bento XVI, nº. 7
[14] Missal Romano, Oração do Dia.
[15] Gl 4, 4.5
[16] Lc 2, 20
[17] Lc 2, 19
[18] K. Rahner

Solenidade da Santa Mãe de Deus Maria - Ofício de Vigílias (31 de dezembro)


Maria autem conservabat omnia verba haec conferens in corde suo...[1]

As palavras que acabamos de ouvir no Sto. Evangelho nos conduzem ao âmago da celebração deste Solene Ofício de Vigílias: Maria guardava todos esses fatos e meditava sobre eles em seu coração.

Segunda antiqüíssima tradição da Igreja, as Vigílias Noturnas eram celebradas com um caráter meditativo e penitencial. Por isso os antigos cristãos, com o Ofício de Vigílias, muitas vezes unido à Eucaristia, preparavam-se para as grandes solenidades do ano litúrgico, máxime a Páscoa do Senhor, chamada por Santo Agostinho, “mãe de todas as sagradas vigílias”.

É neste espírito de meditação e recolhimento que também nós aqui nos reunimos ao celebramos a Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus que, conforme ouvíamos há pouco no Sermão de São Proclo, é a sarça espiritual que o fogo do Deus nascente não queimou; é a leve nuvem que carregou o que se senta sobre os querubins, quando este tomou um corpo; é o veio puríssimo que recebeu o orvalho celeste, aquela em que o Pastor se revestiu de ovelha.[2]

E tudo isto, porque, como nos disse o autor sagrado da Carta aos Hebreus, devia fazer-se em tudo semelhante aos irmãos, para se tornar um sumo sacerdote misericordioso e digno de confiança nas coisas referentes a Deus, a fim de expiar os pecados do povo. [3]

Ensina-nos, igualmente, o Documento de Aparecida, da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe[4] que Jesus, o Bom Pastor, quer comunicar-nos a sua vida e colocar-se a servido da vida. Vemos como ele se aproxima do cego no caminho[5], quando dignifica a samaritana[6], quando cura os enfermos[7], quando alimenta o povo faminto[8], quando liberta os endemoninhados[9]. Em seu Reino de vida Jesus inclui a todos: come e bebe com os pecadores[10], sem se importar que o tratem como comilão e bêbado[11]; toca com as mãos os leprosos[12], deixa que uma prostituta lhe unja os pés[13] e, de noite, recebe Nicodemos para convidá-lo a nascer de novo[14]. Igualmente, convida seus discípulos à reconciliação[15], ao amor pelos inimigos[16] e a optarem pelos mais pobres[17].

É diante do amor de Deus que é sempre Emanuel[18] e nunca abandona seu povo que hoje, como a Ssma. Virgem, nos recolhemos em oração e meditação.

E para nós, esta noite tem um caráter todo especial, uma vez que daqui a alguns instantes terminará mais um ano e outro começará. Por isso, a própria ocasião, por si só, constitui um forte apelo à reflexão e avaliação.

Como nas passagens do evangelho que citávamos, ao mencionar o Documento de Aparecida, experimentamos, várias vezes, no decorrer deste ano de 2007, a mão de Deus, tão afavelmente nos conduzindo. E, apesar dos nossos pecados, provamos, como diz São Pedro na sua Epístola, como o Senhor é bom![19]

Por isso, a primeira atitude que, nesta noite, deve brotar do nosso coração é a gratidão! A começar pela maior de todas as graças que é o próprio Deus, celebrado e recebido na Santa Eucaristia, na qual, quando bem recebida, nos tornamos Aquele que recebemos, como escreveu o Santo Padre na Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis[20]

Da Eucaristia brotam os bens que recebemos, uma vez que todo dom precioso e toda a dádiva perfeita vêm do alto e desce do Pai das luzes, como nos diz a Palavra[21].

E devemos incluir nesta ação de graças, queridos irmãos, não só os momentos felizes, mas também as provações. Sim, nesta noite devemos colocar diante de Deus todo o ano de 2007, com os sorrisos e as lágrimas, os sucessos e fracassos, os reconhecimentos e as incompreensões que quiçá tenhamos passado. Mas nada disso foi permitido em vão pela amorosa providência de Deus que “nunca permite um mal se daquele mal não tirar um bem ainda maior”. Em tudo Deus age por amor, e até dos nossos males sabe tirar algo para o nosso crescimento, qual zeloso jardineiro que do esterco prepara o adubo para a vida e a beleza das flores.

E será a Santa Igreja que, por nossa voz, elevará ao seu Senhor e Esposo um solene hino de ação de graças, o Te Deum, uma vez que, como reza a Constituição Pastoral “Gaudium et Spes”, não se encontra nada de verdadeiramente humano que não lhes ressoe no coração.[22]

Te Deum laudamus, te Dominum confitemur – A vós, ó Deus, louvamos. Nós vos aclamamos, sois o Senhor! Será assim que, diante do Santíssimo exposto, agradeceremos solenemente ao Senhor.

Contudo, meus irmãos, lembrando o caráter também penitencial das vigílias, como dizíamos há pouco, não podemos também nos esquecer de pedirmos perdão. Sabemos das nossas infidelidades, não reconhecendo o seu senhoril de Cristo e colocando a nossa limitada e mesquinha vontade acima da amorosa e infinita vontade de Deus!

Quantas vezes, no decorrer deste ano não enterramos os talentos que dEle recebemos em abundância, escondendo-os e inutilizando-os pela orgulho e pelo egoísmo? Ele, que é bom e misericordioso e que, como diz Sta. Teresa de Ávila, “nos ama não por aquilo que deveríamos ser, mas pelo que somos” nos perdoará e nos fortalecerá com a Sua graça.

Por fim, meus irmãos, lembremo-nos que, para nós cristãos, o tempo não é o cronos dos gregos, visto por eles como um monstro devorador; mas o kayrós, o tempo da graça, um grande dom de Deus que não devemos nunca desperdiçar. Por isso, consagremos a Deus, desde já, o ano de 2008, a fim de que nos dediquemos com todo o afinco a anunciar Jesus Cristo, a viver o evangelho, como os pastores, cujo anúncio, deixaram a todos maravilhados[23]. Aí descobriremos o que significa um ano sempre Novo e Próspero, sendo, pela intercessão “dAquela que nos trouxe o autor da vida”, um sinal vivo de Paz e Esperança para todos aqueles que nos cercam e nos cercarão no decorrer da nossa vida!

É nesta esperança inabalável que vem de Deus, que transforma cada minuto em dom de Seu Amor que concluo esta singela homilia com um velho poema:

Conta teu jardim pelas flores, nunca pelas folhas caídas;
Conta tua vida pelas horas alegres,nunca pelas tristes;
Conta tuas noites pelas estrelas, nunca pelas sombras;
Conta teus dias pelos sorrisos, nunca pelas lágrimas;
E, para bem desfrutares desta vida,
conta tua idade, não pelos anos, mas pelos amigos!

[1] Lc 2, 19
[2] Lecionário Monástico, Vol 1, Ed. Lumen Christi
[3] Hb 2, 17
[4] No. 353
[5] Cf Mc 10, 46-52
[6] Cf Jo 4, 7-26
[7] Cf. Mt 11, 2-6
[8] Cf. Mc 6, 30-44
[9] Cf. Mc 5, 1-20
[10] Cf. Mc 2, 16
[11] Cf. Mt 11, 19
[12] Cf. Lc 5, 13
[13] Cf. Lc 7, 36-50
[14] Cf. Jo 3, 1-15
[15] Cf. Mt 5, 24
[16] Cf. Mt 5, 44
[17] Cf. Lc 14, 15-24
[18] Cf. Mt 1, 23
[19] 1Pd 2,3
[20] No. 36
[21] Tg 1, 17
[22] No. 01
[23] Cf. Lc 2, 18

domingo, 30 de dezembro de 2007

Festa da Sagrada Família de Jesus, Maria e José


Toda a vida de Cristo foi santificante e redentora, desde o primeiro instante em que se fez Carne no seio puríssimo da Santíssima Virgem até o dia do seu Sacrifício Redentor no Calvário. E quis o Senhor começar esta sua tarefa redentora no seio de uma família simples, normal. O lar onde nasceu foi a primeira realidade humana que Jesus santificou com a sua presença.

Nesse lar, José era o chefe de família; como pai legal era a ele que cabia sustentar Jesus e Maria com seu trabalho. Foi ele quem recebeu a mensagem do nome que devia dar ao Menino – pôr-lhe-ás o nome de Jesus[1] – e as indicações necessárias para proteger o Filho: Levanta-te, toma o Menino e foge para o Egito[2]. Levanta-te, toma o Menino e volta para a pátria[3]. Não vás a Belém, mas a Nazaré. Dele aprendeu Jesus seu ofício, o meio de ganhar a vida. Jesus devia muitas vezes manifestar-lhe a sua admiração e seu carinho.

De Maria, Jesus aprendeu maneiras de falar, ditos populares cheio de sabedoria, que mais tarde utilizaria na sua pregação. Viu com certeza como ela guardava um pouco de massa de um dia para o outro, como lhe jogava água e misturava com a nova massa, deixando-a fermentar bem abrigada debaixo de um pano limpo. Quando a Mãe remendava roupa o Menino devia observá-la; se uma peça tinha um rasgão, Maria procuraria um pedaço de pano que se ajustasse ao remendo. Jesus, com a curiosidade própria das crianças, perguntar-lhe-ia por que não se servia de um tecido novo; e a Virgem explicar-lhe-ia que os retalhos novos, quando são molhados, estiram o pano anterior e aumentam o rasgão; por isso era preciso fazer remendo com pano velho... E quando as melhores roupas, que se reservavam para os dias de festa como a Páscoa ou a Festa das Tendas, Maria sem dúvida tinha muito cuidado em colocar junto ervas próprias perfumadas, para evitar que a traça as destruísse. Tudo isso aparecerá anos mais tarde na pregação de Jesus... E são provas do santo alicerce que o Senhor se dignou ter nesta Família Sagrada, pois era ela exemplar, modelo de virtudes humanas, disposta a cumprir com exatidão a vontade de Deus.[4]
Mas não podemos só, amados irmãos, admirarmos de longe, como num presépio, esta Sagrada Família. É necessário que entremos nessa casa de Nazaré.

O Servo de Deus o papa Paulo VI, na alocução pronunciada na sua histórica visita à Terra Santa em 1964 e que lemos esta manhã no Ofício de Vigílias, nos lembra que Nazaré é a escola onde se começa a aprender a vida de Jesus: a escola do Evangelho. Aqui – diz o Pontífice – se aprende a olhar, a escutar, a meditar e penetrar o significado tão profundo e tão misterioso, dessa manifestação tão simples, tão humilde e tão bela, do Filho de Deus /.../ Aqui se aprende o método que nos permitirá compreender quem é o Cristo. Aqui se descobre a necessidade de observar o quadro de sua permanência entre nós: os lugares, os tempos, os costumes, a linguagem, as práticas religiosas, tudo de que Jesus se serviu para revelar-se ao mundo. Aqui tudo fala, tudo tem seu sentido. Aqui, nesta escola, compreende-se a necessidade de uma disciplina espiritual para quem quer seguir o ensinamento do Evangelho e ser discípulo de Cristo”.[5]

Sim, meus queridos irmãos, Nazaré vem hoje ensinar a nós e as nossas famílias o cerne da vida cristã e sua medula mais preciosa, o discipulado de Jesus Cristo. Se quisermos segui-lO com radicalidade, a fim de que Sua Paz reine em nossos corações, como nos disse São Paulo na 2ª. Leitura[6], entremos em Nazaré e deixemos nos moldar por esta Escola de Amor.

E como necessitamos dessa Escola nos nossos dias! Na atual revolução social, a célula familiar está particularmente em perigo. Seu direito tradicional, sua moral, sua economia, sua função são frequentemente postas em discussão.

Do ponto de vista moral, as separações, o monstruoso assassinato do aborto, o espinhoso problema da limitação da natalidade e o aumento do número de matrimônios fracassados obrigam os cristãos a retomar consciência do caráter sagrado da família cristã. No plano econômico, a crise de moradia, o desemprego, o problema do tempo de lazer e convivência abalam a economia familiar e sacrificam essa célula essencial às exigências da sociedade técnica.

Hoje, mais do que nunca, devemos entrar na “Escola de Nazaré”, como disse Paulo VI, e aprender dela as lições sem as quais nenhuma Família verdadeiramente cristã poderá viver.

E a grande lição é o Amor a Deus através da oração, da vivência dos Sacramentos, sobretudo do Santo Matrimônio, imagem do amor fecundo da Santíssima Trindade.[7] Uma família que reza unida, unida permanecerá! Sim, pois diante de tantos obstáculos, será sempre a oração a nossa grande âncora de esperança. O Santo Padre, Bento XVI, na sua recente encíclica Spe Salvi nos ensina que o primeiro e essencial lugar de aprendizagem da esperança é a oração. Quando já ninguém me escuta, Deus ainda me ouve. Quando já não posso falar com ninguém, nem invocar mais ninguém, a Deus sempre posso falar. Se não há mais ninguém que me possa ajudar – por tratar-se de uma necessidade ou de uma expectativa que supera a capacidade humana de esperar – Ele pode ajudar-me.[8]

Se é verdade que não podemos julgar nem generalizar ninguém e que cada caso é sempre especial, é também verdade que muitas situações de conflito familiar seriam sanadas não na certidão de divórcio, mas à luz da Palavra de Deus; não na frente de um magistrado ou oficial de justiça, mas diante de Deus... Neste sentido, o Documento de Aparecida, da V Conferência do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, nos diz com ênfase: Deus ama nossas famílias, apesar de tantas feridas e divisões. A presença invocada de Cristo através da oração em família nos ajuda a superar os problemas, a curar as feridas e abre caminhos de esperança. E lembrando que todos nós, Igreja, temos aí grave responsabilidade, continua: Muitos vazios do lar podem ser atenuados através de serviços prestados pela comunidade eclesial, família de famílias.[9]

Mas tudo isto não se tornará realidade, se não nos enraizarmos na vontade de Deus, mesmo diante dos desafios e neblinas que muitas vezes parecem ocultar esta vontade. São João Crisóstomo, comentando o evangelho de hoje, põe em evidência a fé, obediência e fidelidade de S. José, o chefe da Sagrada Família, diante da palavra do Anjo que o chamava a fugir para o Egito: “Ao ouvir isto José não se escandalizou nem disse: isto parece um enigma! Tu próprio, ainda não há muito, dizias-me que Ele salvaria o seu povo, e agora não é capaz de se salvar nem sequer a si mesmo, mas até temos necessidade de fugir, de empreender uma viagem, uma longa deslocação; isto é contrário à tua promessa! Mas não diz nada disto, porque José é um varão fiel. Também não pergunta pela data do regresso, apesar de o Anjo a ter deixado indeterminada, pois lhe tinha dito: fica lá até que eu te avise. Não obstante, nem por isso levanta dificuldades, mas obedece e crê e suporta todas as provações com alegria. É bem verdade que Deus, amigo dos homens, mistura mágoas e alegrias, procedimento que adota com todos os santos. Porém, nem as penas nem as consolações no-las envia ininterruptamente, mas com umas e outras Ele vai tecendo a vida dos justos. Isto mesmo fez com S. José”.

Jesus, viveu a plena obediência à vontade do Seu Pai. [10] Maria Santíssima guardava tudo no seu coração e meditava em constante oração.[11] José, no silêncio, na oração e no trabalho, era exemplo de pai, de esposo, de monge e de sacerdote.

No silêncio eloqüente da presença de Deus, vivia esta Família. Ó silêncio de Nazaré – exclama ainda Paulo VI – ensina-nos o recolhimento, a interioridade, a disposição para escutar as boas inspirações e as palavras dos verdadeiros mestres. Ensina-nos a necessidade e o valor das preparações, do estudo, da meditação, da vida pessoal e interior, da oração que só Deus vê no segredo.

É também em Nazaré que aprendemos verdadeiramente a ser família, ou, como dissemos a pouco, retomar consciência do caráter sagrado da família cristã. Em meio a esta tempestade que vive a família hodierna, assolada por tantos males, aprendemos a necessidade do amor, vivido sobretudo na doação desinteressada e no perdão. Sim, meus irmãos, nenhuma família, nenhuma comunidade, pode jamais se chamar de cristã, se não vive com sinceridade o dom do perdão. É nele que o amor é construído e a paz é concretizada. Sem perdão não há nem pode haver a verdadeira paz! Se quisermos a paz nas nossas famílias e nas nossas comunidades, aprendamos a perdoar! Repito, sem perdão não há paz!

Meus amados irmãos e irmãs, já nas vésperas da celebração da Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus, concluo esta singela homilia, com as marcantes palavras do Servo de Deus João Paulo II, na sua Exortação Apostólica Familiaris Consortio: Desejamos que a Virgem Maria, Mãe da Igreja, seja também Mãe da “Igreja doméstica”, e que, graças à sua ajuda materna, cada família cristã possa chegar a ser verdadeiramente uma pequena Igreja de Cristo. Seja Ela, Serva do Senhor, exemplo de uma aceitação humilde e generosa da vontade de Deus; seja Ela, Mãe Dolorosa aos pés da Cruz, quem alivie os sofrimentos e enxágüe as lágrimas daqueles que sofrem pelas dificuldades das suas famílias. E que Cristo Senhor, Rei do Universo, Rei das famílias, esteja presente, como em Caná, em cada lar cristão, para dar luz, alegria, serenidade e fortaleza.[12]

[1] Mt 1, 21
[2] Mt 2, 13
[3] Cf. Mt 2, 20
[4] Cf. CARVAJAL, Francisco Fernández, in “Falar com Deus”, Ed. Quadrante, São Paulo, 1995, Vol. 1, pp.156-157,
[5] Liturgia das Horas, Vol. I
[6] Cf. Cl 3, 15
[7] Cf. Documento de Aparecida, Texto conclusivo da V Conferência do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, no. 117
[8] No. 32
[9] Documento de Aparecida, Texto conclusivo da V Conferência do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, no. 119
[10] Cf. Lc 22, 42
[11] Cf. Lc 2, 51
[12] No. 86